Praxe: integração ou humilhação?
- Ana Neves | Bianca Rocha | Carina Silva | Daniela
- 18 de dez. de 2018
- 7 min de leitura

A cidade de Coimbra, mais conhecida como a cidade dos estudantes de Portugal, deu palco às primeiras praxes do nosso país no século XIII, na altura desempenhadas pela Polícia Académica, com vista a preservar a disciplina escolar e punir disciplinarmente os atos de insubordinação. Já no século XVIII, na sequência da morte de um estudante durante as atividades praxísticas, o rei D. João V achou por bem proibir o exercício das mesmas. Todavia, no seguinte centenário, aquilo que outrora foi censurado pelo chefe supremo da nação acabou por ressurgir no seu pior. Muitos foram aqueles que se contrapuseram a esta decisão e condenaram as ações e o intuito desta organização praxística. Deste modo, surgiram assim em Portugal os primeiros grupos anti praxe.
Sendo Coimbra um importante pilar nas tradições académicas, muitas das instituições de ensino superior seguem cegamente as mesmas. Algumas mais à risca, outras nem tanto, mas a verdade é que Coimbra é conhecida pelos capa negra, que independentemente da cor que tanto defendem, encontram-se ali por um motivo.
Hoje vivemos numa era em que o tema da praxe ainda é um assunto polémico e contraditório. Num constante confronto entre os defensores da praxe e os anti praxe, “integração” e “humilhação” são consideradas as principais palavras-chave. Vários são os argumentos, mas quem justifica a tão conhecida tragédia do Meco? E a praxe que acolhe os caloiros numa cidade totalmente desconhecida?
Pressão Social VS Livre-Arbítrio
“As pessoas devem ser respeitadas pelo seu conhecimento, mérito e trabalho e não pelo número de matrículas que têm”, esta é uma opinião partilhada por inúmeros estudantes, como é o caso de João Mareco, aluno da Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC), e de Miguel Nogueira, estudante da Faculdade deCiências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra. Já os defensores da praxe afirmam que esta diferença de matrículas é algo que os leva a ser “superiores”, pois os alunos mais velhos já passaram por tudo o que os caloiros vão passar, como Cátia Cardoso, ex-aluna da ESEC e atual estudante da Universidade da Beira Interior (UBI), refere “na praxe, há que reconhecer que aquelas pessoas que são mais velhas sabem mais qualquer coisa que nós – mesmo no que diz respeito às unidades curriculares do curso, pois já passaram por lá”.

Contudo, de acordo com alguns estudantes, o contexto dentro e fora das atividades praxísticas é diferente. A hierarquia apenas se manifesta durante a realização das mesmas, pois fora desta, são todos estudantes do mesmo curso, como sublinha Cátia Cardoso, “nunca me senti inferior aos meus ditos “doutores””, afirmando que “eles nunca se elevaram por estarem acima na hierarquia”, uma vez que “fora daquela hora semanal de praxe sempre fomos todos amigos, jantávamos e saíamos juntos”.
Em algumas instituições, a Comissão de Praxe apresenta um poder excessivo em relação aos outros grupos académicos (como a Tuna ou a Associação de Estudantes). “Na ESEC, a Comissão de Praxe condiciona o desenvolvimento de outras instituições com maior responsabilidade”, como afirma João Mareco que considera que “deveriam ser criadas outras atividades de apoio e integração dos novos estudantes, nomeadamente uma maior relação entre as várias escolas do Instituto Politécnico de Coimbra (IPC)”.

Como as Comissões de Praxe são grupos maioritariamente conhecidos pela sua forma de integração, muitos alunos veem-se “obrigados” a participar nas atividades propostas pelas mesmas, para de alguma forma se sentirem iguais aos seus colegas e integrados. Frederico Magueta, estudante da ESEC, alega que pelo que vê em alguns colegas, “a praxe é um assunto sobre o qual existe uma enorme pressão social para frequentar, e quem não participa é mesmo, em alguns casos, olhado de lado”. Esta opinião difere com a aluna Ana Ferreira, estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que defende que “há imensa gente que não frequenta a praxe e que forma grupos para as pessoas que não se identificam com a mesma se poderem integrar e terem alguém com quem passar os momentos académicos mais importantes. Realizam algumas atividades que se fazem na praxe, mas sem a diferenciação de “doutor” e "caloiro"".
Na perspetiva da Tertúlia
Daniela Salomão, uma ex-aluna de 23 anos da ESEC, frequentou a praxe e inclusive pertenceu à Comissão de Praxe da mesma, a Real Tertúlia Bubones (RTB). Desde o seu primeiro ano como caloira que a forma de integração e o modo como foi recebida pela RTB a cativou, “a maneira como eles nos faziam vibrar por isto, gritar pela escola, divertindo-nos ao máximo, tudo isso me fez achar que podia fazer igual ou melhor”, fazendo assim com que arriscasse participar na mesma. Apesar dos altos e baixos que Daniela teve ao longo do seu percurso neste grupo, confessa que voltaria a repetir a experiência novamente, “foram sempre muito bons.
Apesar de internamente ser um pouco diferente do que se mostra em ambiente de praxe, essa diferença era boa e permitiu-me incutir ainda mais respeito e dar mais valor à RTB”.
Daniela Salomão assegura que a praxe não mudou desde que entrou na ESEC, mas isto de uma forma positiva, pois a praxe desta instituição “prima por bem integrar, por ser divertida e inclusiva”, e afirma que até tem melhorado porque se tem feito mais praxes de cariz solidário. Quando questionada sobre se voltaria a fazer tudo pela praxe, Daniela responde com convicção “sim, sem dúvida que voltaria a fazer tudo pela RTB, porque fazer tudo por ela é fazer tudo pelos caloiros”.
O que eles vivem: os testemunhos
Várias são as atividades que se realizam em praxe, e várias são as histórias que ficam na memória de quem alguma vez as frequentou. Estas podem ser recordadas com saudade ou com repugnância. João Mareco conta-nos que se recorda de uma praxe cujo objetivo passava pelos caloiros trocarem beijos entre si, e que a determinada altura uma colega recusou-se a beijar outro colega na boca, porém, “perante a pressão dos alunos mais velhos para que ela o fizesse, esta acabou mesmo por não resistir e começou a chorar”. Quem também já presenciou uma situação igualmente negativa foi Miguel Nogueira, “Fui a uma praxe em que os caloiros tinham de saltar para uma fonte de água. Toda a gente saltou à exceção de uma rapariga que alegou estar doente, e que por essa razão não o queria fazer. Por esse motivo, naquele momento uma doutora aproximou-se dela e começou a humilhá-la em frente a toda a gente. Ela não pôde fazer mais nada a nãoser ouvir”, relembra o estudante, afirmando que esse foi um dos principais motivos para a certa altura ter abandonado a praxe.
Os testemunhos de João Mareco e Miguel Nogueira, são relatos de estudantes que, embora frequentem instituições de ensino diferentes, convergem quase na perfeição. E não são os únicos. Filipa Meira estuda Filosofia na Faculdade de Letras de Coimbra, e ao contrário de João Mareco e de Miguel Nogueira, conta que não teve como vivenciar histórias de praxe, mas que sabe de histórias de pessoas próximas do qual sente “vergonha alheia”.
Apesar de nunca ter frequentado a praxe, Frederico Magueta desde cedo que pesquisou e leu sobre o assunto, e desta forma formou a sua própria opinião.
“Vi um aluno a ser humilhado em plena praxe simplesmente pela sua orientação sexual”, o que só comprovou o que anteriormente pensava.
Com o mesmo ponto de vista, Stéphane Silva, aluno do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, não recorda a praxe pelos melhores motivos, “tive de estar seis horas em pé, sem poder comer ou beber água e a ter de pedir autorização para ir à casa de banho. No final, tivemos de rastejar uns metros para que depois nos fosse despejado comida estragada”. Stéphane Silva não teve a liberdade de decidir se queria ou não participar nesta praxe, uma vez que os alunos mais velhos tiveram acesso aos horários dos caloiros, esperando-os à porta das salas de aula após o término das mesmas, numa tentativa forçada de os levarem a participar na atividade.
Muitas das opiniões são divergentes, porque sendo a praxe um assunto controverso, gera sempre muitos pontos de vista diferentes. Tal como existem alunos que não se sentiram integrados com esta prática do ensino superior, também existem alunos que a praticaram desde o primeiro momento e que dariam tudo para repetir a experiência.
Praxe também é saudade
Cátia Cardoso considera que a praxe existe quando “o caloiro é colocado em primeiro lugar”, isto é, quando ele é integrado e lhe são proporcionados bons momentos, como afirma ter sido o seu caso no ano de caloira, “senti-me muito integrada desde o primeiro dia, por ter os meus colegas mais velhos à minha espera e dos outros caloiros da altura e disponíveis para nos ajudar no que precisássemos”.
Catarina Santos, aluna da ESEC, fala da cidade que ainda não deixou, já com saudade. “Coimbra é a cidade do conhecimento, a cidade onde tudo começou. Nesta cidade praxa-se e praxa-se bem porque se respira de uma maneira muito mais intensa o espírito académico” afirma a jovem emocionada, enquanto nos conta que tem amigos a estudar noutras cidades que não se identificam com a praxe, uma vez que as práticas praxísticas são bastante diferentes daquelas que existem em Coimbra, “enquanto eles me contavam as situações que os fizeram desistir, eu persistia em lhes mostrar as minhas razões para continuar”. Quando questionada se voltaria ou não a ser praxada, Catarina Santos afirma imediatamente que sim, de sorriso no rosto. “Viveria aquele ano quantas vezes me deixassem. Foi sem dúvida o melhor ano da minha vida”, conclui a futura jornalista, apelando a que todos experimentem a praxe.

A praxe não é apenas uma forma de integração, é também uma maneira de proporcionar aos novos estudantes “momentos incríveis de amizade” e “trabalho de equipa”, tal como afirma Patrícia Caneira, que se encontra agora no último ano do curso de Comunicação Social. A finalista contou-nos que conheceu uma das suas melhores amigas na praxe, “dávamos as mãos para cantar, saltar, combinar estratégias de jogo, ríamos e chorávamos de emoção sobre essa tal coisa que é Coimbra”.
Muitas foram as vezes em que pensaram desistir, em que o cansaço falava mais alto, mas a praxe não é só feita de jogos e posições praxísticas, a praxe é feita de pessoas com espírito de entreajuda. “Numa praxe tive vontade de desistir, mas olhei à minha volta e compreendi que estávamos ali todos para o mesmo. Senti que tinha de lutar, porque não estava sozinha. A praxe é isso, olhar para o lado e sentir que com aquelas pessoas, somos capazes de fazer tudo, desde que estejamos juntos”, confessa Ana Mamede, estudante da ESEC.

Todos os anos ouvimos falar do mesmo tema “praxe: integração ou humilhação” e, todos os anos, existem os mesmos problemas e as mesmas soluções (nenhumas). A praxe é um tema amplamente discutido, mas são poucos aqueles que realmente agem de forma positiva sobre ela. Deste modo, Miguel sugere que “as mentalidades têm de mudar, as pessoas têm de refletir mais sobre as coisas e parar de seguir cegamente o que os outros fazem ou fizeram (…), acho que é muito fácil passar a noção do bom-senso e usar a praxe para se sentir superior e dominante”.
Contudo, a dúvida persiste: humilhação ou integração?
Fotografia: Beatriz Céu, Ana Domingues e Patrícia Caneira.
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