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O CAMINHO PORTUGUÊS DE SANTIAGO DE COMPOSTELA

  • Soraia Lima
  • 4 de jan. de 2019
  • 7 min de leitura

Com sete rotas históricas, os caminhos da fé guiam, todos os anos, centenas de milhares de pessoas até à catedral de Santiago de Compostela.



Com uma mochila às costas, carregada de expetativas, percorre-se o caminho!

Começam de pontos geográficos diferentes, geralmente Lisboa ou Porto, todos com o mesmo objetivo: chegar a Santiago de Compostela, ao famoso quilómetro 0, na Praza do Obradoiro, mesmo em frente à majestosa catedral.


As expetativas de quem percorre o caminho

“Toda a história à volta do caminho, a vontade de me desafiar a mim próprio e de ter novas perspetivas foi o que me fez pôr a mochila às costas e seguir o caminho”, contou Filipe Pereira, um jovem estudante que já partiu à descoberta de Santiago por duas vezes. “Decidi que a melhor altura para o fazer era no verão, porque havia maior probabilidade de bom tempo, tinha férias e sabia de uma colega que também queria ir”. Os relatos deste tipo de incertezas são vários, incluindo o meu. Nunca sabemos como ir, o que levar, o que esperar, mas sabemos o que nos faz caminhar durante tanto tempo: a vontade de chegar.


Do Porto a Valença do Minho

Começámos num dia quente de verão, em pleno agosto, quando os termómetros estavam sincronizados com todas as nossas expetativas. Sem noção de quantos quilómetros nos estavam destinados, partimos do Porto, ao início da tarde, com a certeza de que chegaríamos ao primeiro albergue. Naquele dia, nosso corpo não nos permitiu chegar a São Pedro de Rates. Ficámos por Vairão, uma pequena aldeia que nos acolheu na primeira noite de descanso.

Na madrugada seguinte, seguimos o nosso caminho, devagar e cautelosamente do mesmo modo em que encontrávamos gente de todo o mundo. Alguns quilómetros antes de Barcelos, encontrámos um rapaz de Los Angeles que entrou nesta aventura sozinho. Conheceu Lisboa e começou o caminho a pé, numa tentativa de se compreender melhor a si próprio num país que não era o seu. “É incrível que vocês foram os primeiros jovens portugueses que eu encontrei ao longo destas semanas”, disse surpreendido. Depois de alguma conversa, ficou para trás, “vocês andam muito rápido (risos), eu vou abrandar um pouco” e lá ficou às portas de Barcelos, uma cidade encantadora. O certo é que cada pessoa anda ao seu ritmo, a uma velocidade que nos permite perceber o porquê de estarmos ali, o porquê de sermos quem somos, o porquê de querermos chegar a um sítio que nem conhecemos. Por vezes, é esse o nosso propósito! Chegar a um lugar onde sabemos que vamos ser bem recebidos e que nos faz sentir que cumprimos o nosso objetivo.

De Barcelos, tomámos o pequeno almoço no cimo de um monte, numa pequena povoação onde o senhor do estabelecimento se esforçava para interagir connosco. “Não quer um bolinho? Beba um cafezinho para ajudar na caminhada” eram algumas frases ditas por ele, numa tentativa de fazer negócio e de reconfortar os peregrinos que não tinham uma refeição completa há alguns dias. Da esplanada do café avistávamos mais uma cidade que deixámos para trás, sempre com a atenção posta nas que viriam pela frente. Nessa tarde, chegámos à “casa da Fernanda”, uma senhora que construiu um albergue para que os caminhantes possam descansar. Lá encontrámos o conforto de um lar. Uma mãe que nos contava histórias e dava conselhos, uma refeição caseira como se estivéssemos nos dias mais frios de inverno e uma cuidadora que sarava as nossas feridas como se elas desaparecessem naquele instante. Dissemos-lhe que iriamos sair de casa, de madrugada, às quatro da manhã. “De noite todos os gatos são pardos” era o pretexto para nos fazer sair mais tarde juntamente com as histórias dos peregrinos que se perdiam do caminho devido à escuridão da noite. Dissemos-lhe também que iriamos fazer a etapa mais difícil do caminho com a subida da Serra da Labruja aproximadamente às três da tarde e a resposta foi previsível “Vocês são malucos”. Mal sabia ela que, mesmo assim, sairíamos cedo, muito longe do sol começar a aparecer e cumpriríamos o nosso plano inicial com sucesso! Assim, num frio caraterístico do norte, pegámos nos agasalhos e saímos da casa da Fernanda ainda numa noite serrada. Entrámos em Ponte de Lima de manhã bem cedo com a população a preparar a feira semanal que nos recebeu com tudo o que há nestes lugares.

A cidade estava movimentada e aproveitámos para nos abastecermos de mantimentos para a famosa Labruja. Essa serra que tem tanto de linda como de intransitável. A subida foi longa, cheia de histórias de tempos passados de como as tropas do exército francês de 1809 tinham atravessado aqueles caminhos, numa marcha forçada com a sede de chegar ao topo. Também nós tínhamos o desejo de chegar lá acima mas, a elevada inclinação e as pedras irregulares fizeram-nos testar, mais uma vez, os nossos limites. No topo, esperava-nos um tanque de água pura e cristalina e uma patrulha de vigilantes da natureza que estavam a controlar toda a serra durante o verão. Depois de uns minutos à conversa, eles disseram-nos que “não é suposto ninguém passar por aqui nesta altura, mas como são peregrinos não há problema”. Em Rubiães, encontrámos dois ciclistas que tinham começado o caminho desde Barcelos e que planeavam chegar a Santiago no dia seguinte. Pedalaram mais de quinze horas sem mazelas. Quando lhes perguntámos o porquê a resposta era a mesma de outros tantos peregrinos: “pelo desafio”. Dormiram junto a nós naquela noite, mas quando acordámos eles já não estavam lá.

Seguimos em direção a Valença, onde vimos de tudo um pouco. Os contrastes entre portugueses e espanhóis, a fortaleza que se impunha do alto das suas muralhas naquele que era o último dia em Portugal. A partir dali, Espanha ia acolher-nos até ao dia da grande chegada!


De Tui a Santiago de Compostela

A ponte internacional de Tui-Valença foi a nossa passagem até à fronteira. De madrugada, vimos uma vila a acordar, os enganos no caminho e o sol a nascer num novo horário, que jogava contra nós. As setas amarelas eram as nossas melhores amigas, o símbolo que nos guiava por entre as ruas desconhecidas: “se no espaço de cem metros não virem uma seta, é porque vão pelo caminho errado”. E é mesmo verdade. Cansados dos dias de caminhadas sem fim, os cafés eram os nossos sabores aconchegantes, o que nos fazia lembrar a nossa casa. Em Mós, encontrámos um casal de italianos que nos ajudaram a tratar das bolhas que nos foram acompanhando ao longo de todos os quilómetros que já tínhamos percorrido. Ensinaram-nos tudo o que podiam sobre o caminho e dormiram no mesmo quarto que nós, em beliches lado a lado. Acordámos ao mesmo tempo, mas partimos em horas diferentes, quando o sol ainda não se via no horizonte. Pelo caminho, atravessámos florestas e nascentes até avistarmos a povoação que nos acolheria neste dia, Pontevedra. A chegada foi dura, demorada e não terminou no albergue da cidade porque estava cheio de peregrinos. Fomos direcionados a um pavilhão gimnodesportivo que ficava a dois quilómetros de onde estávamos. Aquele era o local de descanso daquele dia que parecia nunca mais aparecer perante os nossos olhos. Atravessámos a cidade lentamente até chegarmos ao pavilhão. À porta, esperava uma senhora, Maria, que nos recebia de braços abertos e indicava os nossos lugares. Há mais de trinta anos que acolhia peregrinos em Pontevedra e ouvia as suas histórias “há quem não aprenda nada no caminho e há quem chegue a meio e já tenha percebido o porquê de ter vindo”. Ficámos à conversa durante bastante tempo até aparecer um grupo de portugueses, de Aveiro, cansados e com dúvidas sobre a sua jornada. “Usei a minha única semana de férias do verão para vir para aqui, não sei se não era melhor ter ficado e casa. Aqui não descanso nada!” e a verdade é que o caminho não ajuda a descansar. Nem o corpo nem a mente. O caminho torna-nos mais ativos nestes dois aspetos. Eles tinham vindo com a família e o que os fazia continuar era estarem “todos juntos, o que é raro durante o ano”. Rapidamente chegou a hora do descanso e mais um dia se tinha passado. Nas cidades seguintes, nadámos em nascentes e descansámos em tanques termais por algum tempo. Estávamos perto do nosso grande destino final. Mas antes, na nossa última paragem em Valga, conhecemos um empresário que estava a caminhar sozinho desde a Maia. “Há anos que pergunto aos meus amigos se eles querem vir. Dizem sempre que sim, mas depois nunca podem, por isso este ano vim sozinho”, dizia o senhor a quem nunca perguntámos o nome. Ao jantar trocamos ideias e histórias de vida. De manhã, partimos ao mesmo tempo, mas logo nos deu uns bons quilómetros de avanço. Ele tinha pressa de chegar e nós não. Fomos parando nas redondezas das montanhas, nas casas com jardins privados que estavam abertos para os peregrinos passarem e nas capelas mais remotas. Visitámos um marco histórico onde dois dos sete discípulos de Santiago, trasladaram o corpo do apóstolo numa barca através do porto de Iria Flavia (atual Padrón) e continuámos. Ao final da manhã, avistámos as torres da Catedral de Santiago de Compostela. Mal se viam mas, os nossos olhos esforçavam-se para esboçarem as suas formas.


A chegada a Santiago de Compostela

Os últimos quilómetros ficaram marcados por um misto de sentimentos. A pressa de chegar com a vontade de não acabar o caminho. Voltar à realidade era algo que não ansiávamos. Mas teria de acontecer! Entrámos pela cidade a dentro sem nos apercebermos sequer porque a catedral ainda ficava longe. Nos últimos minutos de caminhada eram várias as palavras de alento que outros peregrinos nos davam e nós retribuíamos como “bom caminho”, “falta pouco”, “já não falta tudo”. Até que chegamos ao quilómetro 0. Aquele quilómetro que dá o apito final. Olhamos à nossa volta e vemos lágrimas, risos, saltos e rezas. Nunca sabemos o que sentir. Fica só uma sensação de desafio cumprido, o resto sentimos depois.

“O caminho é para quem tem tempo e vontade de se conhecer”, dizia o padre na Missa do Peregrino. “Ao iniciarem a vossa jornada, trazem uma mochila cheia de coisas que pensam que são necessárias e, ao andarem com ela às costas, mudam de ideias. Carregar um objeto por um dia não é difícil, mas carregarem-no por um mês já o torna dispensável. O mesmo acontece com as nossas preocupações, quanto mais as carregamos, mais nos incomodam.” “O caminho é só mais um desafio que cabe a vocês decidir se muda as vossas vidas ou não”, concluiu.


 
 
 

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